INTERIOR
Preguica
Pavona
Macaca
Galinha
EXTERIOR
Dalila (da Força)
Phryne (da Justica)
Maria Magdalena (da Contrição)
Afrodite (sem Género)
Instalação:
Fato (plastico e nylon)
(feito à mao, renovado ao longo dos seus vários percursos)
Simbologias do descartável
Bruno Ferro
I
A
fotógrafa põe em cena, através das superfícies fotográficas impregnadas de
símbolos (enigmas, que é preciso descodificar), uma personagem que representa,
em última instância, a Humanidade.
Cada
quadro-cena vai contribuindo para o
desvelar de um caminho interior, sob a forma de estória ou conto de fadas
cínico, ao longo do qual a personagem se vai multiplicando, numa delirante busca
de si mesma.
O
corpo que anima a personagem, e que a autora empresta como máscara à
composição, é duplo: por um lado, temos o corpo físico, desnudado, por outro,
um involucro de plástico parece servir-lhe de pele (a pele que nos habita). Como se o corpo - a carne - fosse aquela superfície (exterior)
translúcida, clara, que permite ao olhar atravessar até ao âmago. Como se o corpo
físico que ali vemos fosse, afinal, luz interior, que vai espelhando estados de
alma que se deixam fixar nas imagens, ora estáticas ora em movimento.
A
personagem desdobra-se entre interior e exterior e os nomes das suas encenações
pertencem aos reinos animal, divino, bíblico e histórico, sempre no feminino,
insinuando a presença de forças que transcendem o natural.
Suspensa
no espaço expositivo encontramos a “pele” da personagem, já esvaziada de si,
como se simbolizasse a morte, reenviando simultaneamente para a ideia de
santidade, qual Santa Teresa em êxtase.
II
Evocando
referências da História da Arte e recorrendo ao tom satírico, Duhamel traz para
a arte contemporânea (e para o espaço do museu) a reflexão sobre questões
sociais, culturais e políticas que, embora seculares, configuram problemas
concretos da actualidade, ao mesmo tempo em que tece duras críticas à sociedade
dos nossos dias.
Tais
questões gravitam fundamentalmente em torno da Liberdade, Sexualidade,
Identidade de Género, Diversidade, Comunidade, questões que devem ser
repensadas e actualizadas.
Assente
em falsos pressupostos de liberdade, a sociedade de modelo patriarcal emite
padrões normativos que devem, a todo o custo, ser assimilados por todos. É
esperado de homens e mulheres que se comportem dentro da norma, tendo como
padrão o modelo binário e heterossexual masculino-feminino,
mesmo que para isso seja necessário o esmagamento de outras dimensões igualmente
importantes para o indivíduo.
Hoje,
por exemplo, ainda é encarado como perfeitamente normal o facto de se atribuir
à mulher o papel tradicional da cuidadora do lar, das crianças, dos maridos,
dos idosos, deixando para segundo plano as carreiras profissionais, percursos
intelectuais ou criativos. O homem, por seu turno, deve ser capaz de
enquadrar-se, custe o que custar, nos modelos masculinos que lhe são impostos:
força, coragem, agressividade, competição, mesmo que para isso seja necessário
amputar violentamente outras dimensões íntimas, como a emocional ou sensível.
Homens
e mulheres “ideais” são aqueles que se encaixam perfeitamente nos modelos.
Estes encerram em si também outros atributos, tais como etnia, características
físicas normativas, classe social
exemplar, comportamentos sexuais normais.
A sociedade edifica os modelos da normatividade: homens masculinos, mulheres
femininas, brancos, provenientes da classe média-alta, nem excessivamente
magros, nem excessivamente gordos, definitivamente heterossexuais.
Quem
não é capaz de se adequar aos padrões normativos impostos é, normalmente, descartado. Veja-se o que tantas vezes
acontece com pessoas homossexuais, transsexuais, travestis, provenientes de
estratos sociais mais baixos, outras origens étnicas ou com características
físicas que fogem da norma: são empurradas para a margem, por vezes para a
morte. São, enfim, descartadas.
Muitas
pessoas transexuais ou travestis, por exemplo, que poderiam dar fortes
contributos ao desenvolvimento social, cultural, artístico, desempenhando
relevantes papeis nas universidades e instituições culturais ou sociais, são
afinal impelidas, por inadequação aos modelos normativos, para perigosas
migrações e redes de prostituição, também estas desviadas da atenção e cuidado
das comunidades.
Sob
a aparência de imperativos morais, estes estereótipos tradicionais servem mais
os interesses de um sistema neo-capitalista, que apela constantemente ao
consumo desenfreado, tanto material como emocional.
Aparentemente
livres, as pessoas experimentam uma felicidade forçada (veja-se a forma como se
representam a si mesmas nas redes sociais, por exemplo). As relações entre as
pessoas são frágeis, porque até elas partem dos modelos normativos. A
comunicação cada vez mais vazia, fácil, rápida, superficial, numa rede em que
todos estão ligados e há, no entanto, tanta solidão.
Tudo
parece desembocar numa perda de tempo de vida, num enorme vazio, num profundo
estado de confusão, que só conduz a uma progressiva desumanização.
III
Continuará
a fazer sentido, nos dias de hoje, a aceitação deste tipo de modelos
fracturantes? Fará sentido persistir na Masculinidade
e Feminilidade como bússolas que
orientam os comportamentos sociais, culturais e sexuais dos humanos no seio das
suas sociedades?
Para
uma sociedade mais justa e humanizada, inclusiva e pacífica, onde a diversidade
possa ter expressão e dar o seu contributo, onde todos e todas possam
manifestar a sua individualidade e diferenças no seio de uma liberdade
verdadeiramente plena (recuperando uma unidade interior há muito perdida), é
necessário desconstruir, repensar e transformar estes modelos. Mais, é preciso
superá-los, transcendê-los.
Talvez
seja para onde aponta o pensamento criativo da nossa Virginie Duhamel, quando a
sua delirante personagem se enforma na figura de Afrodite. Afrodite (sem género),
símbolo máximo da humanização da sexualidade.
AFRODITE (...)
O mito de Afrodite poderia
permanecer durante algum
tempo ainda como a imagem de uma perversão, a perversão da alegria de viver e das forças
vitais [...]. Por o próprio amor
não estar humanizado, permaneceria no nível
animal, digno daquelas feras que compõem o cortejo da Deusa. Entretanto, no termo de uma tal evolução, Afrodite poderia aparecer como uma força
que sublima o amor [...] integrando-o numa vida verdadeiramente humana.
Chevalier, Jean e Gbeerbrant, Alain, Dicionário dos símbolos
Setúbal,
Casa Bocage
17
de Março de 2018
Vídeo:
A Invasão da
Fartura
(Filmagens e
edição Jose Budha)
Disposable
Symbologies
Bruno
Ferro
I
The
photographer stages, through impregnated symbolic photographic surfaces
(enigmas that need to be deciphered), a character that represents, as a last
resort, Humanity.
Each
scene-frame contributes to reveal an internal path, presented as a story
or cynical fairy tale, on which the character spreads herself, multiplying, in
a delirious search, trying to find herself.
The
body animates the character, and for the author is a mask for the composition,
a doppelganger:
on one side, we have the physical body, naked, on the other, a plastic shell
that seems to serve her as skin (the skin
that lives in us). As if the body – the flesh- would be that translucid
coating (exterior), that allows the sight to penetrate to the core.
As if the physical body that we see, would be, after all, an interior light,
that mirrors states of mind allowing themselves to be fixed on the images,
static or in movement.
The
character unfolds between interior and exterior and the names of her
re-enactments belong to the animal, divine, biblical and historical realms,
always in the feminine, insinuating the presence of forces that transcend the natural.
Suspended
in the exhibiting space we find the character’s “skin”, emptied of herself, as
if it symbolized death itself, redirecting simultaneously to the idea of
sanctity, as some Saint Teresa in ecstasy.
II
Evoking
History of Art references and using a satirical tone, Duhamel brings to
contemporary art (and the museum space) a reflection about social, cultural and
political issues that, even if secular, shape concrete and actual problems as
well as forging harsh contemporary social criticism.
Those
issues gravitate fundamentally around the themes of Freedom, Sexuality, Gender
Identity, Diversity, and Community, issues that should be rethought and
actualized.
Based
on false presumptions of freedom, patriarchal model society issues normative
patterns that must be, at all cost, assimilated by all. It is expected for men
and women to behave in that norm, having as a pattern the binary and
heterosexual masculine-feminine model, even if, for it to happen, other
dimensions equally important for the individual must be smothered.
Today,
for instance, assigning to women the traditional role of house keeping, child
bearing, husband and elderly people carer is still perceived as perfectly
normal, leaving professional career, intellectual or creative paths behind.
Men, on the other hand, must be able to fit in, by any means, to the masculine
models that they are subjected to: strength, courage, aggressiveness,
competition, even if for that to happen, other intimate dimensions, as the
emotional or sensitive one must be violently amputated.
“Ideal”
men and women are those who embed perfectly with the models. Those models who also enclose other
attributes as ethnicity, physical normative characteristics, exemplary
social class, normal sexual behavior. Society builds up normativity
models: masculine men, feminine women, white, from middle to high social class,
not excessively skinny nor excessively fat, definitively heterosexual.
Who
is not able to adapt to those enforced normative patterns is, usually, disposed
of. Just see what happens so many times with homosexual, transsexual, travestite
individuals, from low income social background, other ethnic origins or
physical characteristics that do not follow the norm: they are pushed to the
edges of society, sometimes towards death itself. They are, basically,
disposable.
A
lot of transsexuals or travestites, for example, that could give strong
contributions to social, cultural, artistic milieus, developing important roles in
universities and cultural or social institutions, are propelled after all, by
inadequacy to those normative models, to dangerous migrations and prostitution
networks, also diverted from the attention and care of the communities they are
supposed to be part of.
Under
the appearance of moral imperatives, these traditional stereotypes serve more
the interests of a neo-capitalistic system, that appeals constantly to a
frantic consumption, material as emotional.
Apparently
free, people experience a kind of forced happiness (take a look at the way
people represent themselves in social media, for example). Relationships are fragile,
because even those come from normative models. Communication becomes more and
more empty, easy, fast, superficial, in a matrix where everybody’s linked and
yet feel alone.
All
seems to culminate in a loss of lifetime, a huge emptiness, a profound state of
confusion that only leads to a progressive dehumanization.
III
Does
it still make sense, nowadays, this blind acceptance of these kinds of
fracturing models? Would it still make sense to persist in Masculinity and
Femininity as compasses that guide social, cultural and human sexual
behaviors in their own society?
For
a more humanized and fairer society, inclusive and pacific, where diversity
could have its own expression and give its contribution, where all could
manifest their own individuality and difference in the heart of a real and
complete freedom (gaining back its long lost interior unity), it is mandatory
to deconstruct, rethink and transform these models. Even more, it is necessary
to overcome them, transcend them.
Maybe
that is where our Virginie Duhamel’s creative thinking is taking us, when her
delirious character shapes itself into the figure of Aphrodite. Genderless
Aphrodite, maximum symbol of our sexuality humanization.
APHRODITE (…) The myth of Aphrodite
could still remain for a while as the image of a perversion, the perversion of
the happiness to live and of vital forces (…). As love itself isn’t humanized,
it could maintain itself to the animal level, worthy of those beasts that
compose the Goddesses’ parade. Meanwhile, at the end of this evolution,
Aphrodite could appear as a force that sublimes love (…) integrating it in a
real human life.
Chevalier, Jean e
Gbeerbrant, Alain, Symbol Dictionary
Setúbal,
Casa Bocage
17
de Março de 2018
Translation Virginie Duhamel
Agradecimentos: Nevena Ilic, Anastasia Marto, Bruno Ferro,
Jose Budha, Fernando Chambel, Sebastien Trihan,
Marina Albuquerque, Pedro Ferreira, Nuno Soares (FinePrint), José
Luís Catalão, Casa Bocage e Câmara Municipal de Setúbal.
Links:
https://books.openedition.org/editionsehess/2736?lang=en